Os dedos calejados
- Melanie Martins
- 31 de mai. de 2019
- 6 min de leitura
A lona azul, que estava sendo usada como toldo, balançava ao vento. A rede rasgada se acumulava ao longo de um pequeno bloco retangular de concreto, anexado há muitos anos ao cais da praia de Jurujuba, em Niterói. Sentado no mar de morros que a rede de 660 braços formava, costurando o rasgo, estavam dedos ágeis, grossos e calejados, típicos de pescador. A pele que os cobria estava queimada de sol, porém, o seu tom não tendia para o vermelho, mas sim para o bronze, a cor marcante daqueles que trabalharam uma vida inteira rendidos aos caprichos do clima ensolarado do Rio de Janeiro.
Pescador há 47 anos, Marcos Alfredo Pinheiro Marques, o Marquinho de Sarai, começou a profissão aos 12. Ao contrário do que acontece com muitos, ele não foi apresentado à pesca por meio do pai ou de algum parente próximo. Ele estava no portão de casa quando escutou chamarem seu nome. A voz era do cunhado convidando-o para ir ajudá-lo com a rede. Com uma canoa recém construída, o namorado da irmã de Marquinhos, entretanto, não tinha gente o suficiente para ir ao mar. Quase que por instinto, ele disse sim. Passando como um filme na sua cabeça, Marquinhos viu a época em que ainda brincava de construir barquinhos em “latinhas de alumínio”. “A gente cortava a lata direitinho e fazia a embarcação”. Utilizando pedaços de rede velha e isopor, ele, quando criança, fantasiava a sua primeira ida ao mar como pescador. E, naquele momento, esse desejo que ficou guardado por tanto tempo havia se tornado uma realidade.
O grupo saiu para a enseada de Botafogo. Assim que chegaram lá, fizeram um cerco. A rede embaraçou, então tiveram que recolher e fazer tudo de novo. Lançaram-na mais uma vez. Conseguiram. Após terem pescado o que consideraram suficiente, foram para um entreposto que existia na Praça XV descarregar o peixe. Quando voltaram, Marquinhos viu que estava apaixonado. “Nunca mais larguei, foi amor à primeira vista. A emoção da primeira pescaria, aquilo ‘bateu’ em mim”. E, a partir desse dia, resolveu sair da escola.
“Nunca dependi de pai e mãe, fui eu que decidi sair da escola. E eu também não gosto de ter ninguém me sustentando”. Servindo como um contraponto à obediência que se era exigida em casa e no colégio, estava a pesca, algo que Marquinho entendia que lhe dava liberdade e lhe satisfazia: “Quando você vai para o mar, você se sente outro. Você não lembra de nada do que ‘tá’ acontecendo na terra”. Além disso, ele, nessa época, já havia começado a fumar e como seus pais não estavam dispostos a lhe comprar cigarros, ele foi trabalhar na pesca. Até os 15 anos ele ainda chegou a entrar e a sair da escola algumas vezes, mas não concluiu os estudos. Porém, a partir dos daí ele passou a intercalar a pesca com serviços em terra. Chegou a trabalhar com pneus e borracharias, mas não conseguiu manter. Gostava demais da vida no mar. Só que, aos 18 anos, tudo mudou.
Ao completar a maioridade Marquinhos se casou e teve o primeiro filho, Sandro. Foi então que ele determinou o seu caminho: decidiu que viveria apenas da pesca e, até hoje, ele não se arrepende, mesmo já tendo passado por dificuldades. “A pesca, até hoje só me deu felicidade”, porém ele nunca conseguiu realizar o sonho de ter a sua própria embarcação. Até que Rafael, o caçula dos dois filhos, já com 15 anos na época, enquanto olhava para o mar pediu: “pai, vamos matar sardinha?”. Marquinhos concordou, mas com uma condição: ele teria que arrumar a rede. Assim, os três começaram um processo longo, que durou 6 meses, construindo uma rede que, de certo modo, se baseava em retalhos que Rafael arrumou de outros pescadores. “O garoto queria mesmo ir pescar. Daí saiu igualzinho ao pai”. E ao começarem a rede, iniciaram, também, a costura de um sonho que, na realidade, era compartilhado por essas duas gerações.

O desejo de ser o dono de um barco acompanhou Marquinhos a vida inteira, desde os seus barquinhos feitos de lata. Porém, as “circunstâncias” da vida nunca cooperaram, seja por falta de dinheiro, seja pelo próprio acaso. “Tava escrito que eu ia ter barco com os meus filhos”. Na época em que Rafael começou a querer ter um barco, coincidiu de a empresa que vendia marisco em Jurujuba, para a qual Marquinhos trabalhava como pescador, só ter como pagá-lo se ele aceitasse receber um barco. Devoto de São Pedro, ele responsabiliza o santo pela tamanha sorte que os três tiveram: “Eu sempre pedi a minha embarcação, e eu tenho certeza de que foi ele que me deu essa ajudinha. Tenho quatro em casa”.
A partir desse primeiro barco, o Barbosa, Sandro, Rafael e Marquinhos foram prosperando cada vez mais na pesca. E, enquanto cresciam, o trio se organizou. Sandro, o filho mais velho, cuidava da administração, Marquinhos, da manutenção, e Rafael, da pesca. Sandro é securitário, o que faz com que ele não tenha disponibilidade para ir ao mar como o irmão, mesmo que a pescaria seja o que o satisfaz de verdade. Desse modo, ele resolveu participar procurando melhorias para o negócio da família. "Eu sou uma pessoa que se comunica muito com os outros, e aí eu acabo adquirindo esses conhecimentos, e quando alguém fala de algum aparelho, vou lá e 'fuxico' no Google. E disso eu vou vendo o que serve ou não pra gente".
Porém, chegou uma hora que o barco ficou pequeno demais para eles. Os três já estavam tendo que dar peixe para as outras embarcações, já que pescavam mais toneladas do que poderia aguentar. Segundo Sandro, “o Barbosa era bem simplório, não tinha estrutura quase nenhuma, só tinha o motor, o casco e a rede. Só que nós somos empreendedores, a gente olha para o horizonte voltado para crescer". Então, juntaram dinheiro e compraram um barco com maior capacidade. E essa situação já se repetiu 3 vezes: o Barbosa aguentava 1 tonelada, o barco seguinte que compraram aguentava 2t, o terceiro 6t, e o último, com o qual eles pescam até hoje, chamado Ana Lúcia, lota com 13 toneladas de peixe. Entretanto, até mesmo o Ana Lúcia já não está mais sendo suficiente.
Sendo assim, Sandro começou a procurar na internet outros barcos mais amplos. Apareceu uma boa oportunidade na cidade de Torres, no Estado de Santa Catarina, o que levou Marquinhos a pegar a estrada de carro. Chegando lá ele viu que o barco não era bom: “Já há tantos anos dentro do mar, eu vou saber como é uma embarcação boa”. Saindo da loja onde o barco estava, ele acabou conheço um estaleiro chamado Emanuel. Os dois conversaram o dia inteiro e, no final, combinaram: Emanuel construiria uma embarcação ali no Sul, enquanto Marquinhos, do Rio de Janeiro, enviaria o dinheiro e iria até o estaleiro de tempos em tempos fiscalizar a construção. Começava, agora, a realização de outro sonho: o Marquinho de Sarai, um barco só da família.
Entretanto, o barco tão sonhado e desejado pelos três só ficará pronto no início de 2018. "O projeto já tem 3 anos, já que não temos a ajuda de ninguém tipo o Plano Safra, porque, se tivesse já teria ficado pronta em 1 ano, que é o tempo que geralmente demora para se fazer uma embarcação", diz Sandro. Enquanto isso, o Ana Lúcia continua sendo a principal forma de sustento da família. Porém, antes de trocar de barco, a questão da tecnologia e os avanços que essa área tem obtido na pesca, não passaram despercebidos pelo grupo. “Você tem que ir melhorando, senão você vai ficar para trás”, defende Marquinho, que enfrentou também a diminuição da produção pesqueira no município, que, segundo a Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ), em 2011 alcançou a faixa das 25 mil toneladas, enquanto que, em 2015, se manteve com uma média de 10 mil toneladas. “Meu pai se adaptou a isso tudo, graças a necessidade, mas ele acaba não usando muito, já que a pesca fica a cargo do meu irmão. E também, tem coisas ali que já são mais complicadas de entrar na cabeça de uma pessoa mais ‘avançada’, como algumas palavras em inglês. Mas ele tem noção de como esse aparelhos funcionam, só não sabe mexer muito bem", diz Sandro com orgulho.
O que é mais avançado na pesca hoje, segundo Sandro, é o sistema de gps e de sonar, e que eles sempre recorrem para comprar aparelhos novos e melhores. "O último sonar que nós compramos custou R$65.000 e um gps bom, com a carta náutica e uma tela grande está na faixa dos R$7.000. Ainda tem o radar, que nós temos, que nos ajuda a detectar se tem outra embarcação perto, principalmente quando tem nevoeiro. É um belo investimento.” Eles começaram a se preocupar de verdade com a tecnologia quando, uma vez que estavam pescando, não conseguiam segurar nenhum peixe em suas rede, enquanto que as outras embarcações que estavam do seu lado saíram carregadas de toneladas, já que todas tinham equipamentos que as ajudavam. “A partir daquele dia, a gente ficou esperto”.
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